Pequeno deserto passional - III

Briton Riviere (1898)
Por Airton Vieira
Quarta-feira da Paixão (Estação em S. Marcelo)
“Não roubareis, nem mentireis, e nenhum de vós deverá enganar o vosso próximo… Não amaldiçoareis o surdo, e não lançareis nada aos pés do cego, para o fazer cair; ao contrário, temereis o Senhor, vosso Deus, porque Eu sou o Senhor.” (Lv 19, 1-25)
Neste terceiro dia da semana da Paixão, a Epístola é retirada do livro do Levítico, em que Deus dita a Moisés as leis que devem reger os israelitas, mais tarde a todos os povos, e que com Cristo se resumirá na, por assim dizer, apócope: “Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-39).
O extrato acima foi escolhido para nossa pequena reflexão pela lei divina e natural ser ainda hoje, mais do que antes, deliberadamente transgredida sob formas e em níveis de crueldade, perversidade e insensibilidade realmente preocupantes. Para tal, basta uma rápida busca pela internet, ou um breve olhar ao nosso entorno.
Há menos de um mês um caso se tornou emblemático em nosso país, mais especificamente em sua capital. Nele, um adultério seguido de violência que, felizmente, não terminou em tragédia. Se considerarmos, contudo, as consequências espirituais do caso, se verá que a tragédia não só ocorreu como segue ocorrendo, e menos na vida de seus envolvidos, que ao que tudo indica, com relação aos adúlteros há elementos de patologias de ordem mental que lhes concedem alguma indulgência. O execrável e verdadeiramente preocupante se deu com as reações de um público supostamente são e de posse de suas faculdades mentais, fato que as tornam muito mais sombrias. Há que dizer público devido à publicidade dada ao caso, um primeiro indício de patologia de fundo espiritual mais abrangente e sinistra que a dos protagonistas, e que chega às direções de redações e reportagens dos diversos noticiários, bem como às altas esferas sócio-culturais e políticas de nosso povo, passando naturalmente pelo populacho. As “piadas” e “memes”, o “ibope” concedido ao insano adúltero que acabaram por catapulta-lo, na condição de novo “mito”, a modelo de conduta (ao ponto de ser cogitado para “representante do povo" nas próximas eleições (!), e isto por parte de partidos e homens tidos como respeitáveis e exemplares), deram o tom e a prova cabal do declínio civilizacional em que estamos, onde já se introduziu em nosso dna o tripudiar sobre doenças e doentes, sem sequer escapar os que possuem algum vínculo com estes e lhes coube a árdua tarefa de seu cuidado (como no caso do cônjuge da esposa adúltera, porque enferma).
Adverte-nos o apóstolo em sua carta aos Romanos, capítulos 1 e 2, que não somente os que promovem e expõem o engano, a mentira, difamação, libertinagem, o dano e a crápula são culpáveis, mas também os que assistem passivamente e em seu íntimo de algum modo se congratulam com tais práticas. Em nosso caso, também os que riem, se divertem, “compartilham” e “dão likes” sem ter em conta o sofrimento, a dor e vergonha alheios. E por já termos sido alertados de que “quem está de pé, cuide, não caia” (1 Cor 10,12), não bastará rejeitar, odiar e combater tais práticas, há que diuturnamente cuidar para que também não sucumbamos a elas, dado que “com o aumento da iniquidade a caridade de muitos esfriará” (Mt 24,12s)
O livro da Sabedoria (11,14ss) aponta o modus operandi da justiça divina, ao qual deveríamos estar sempre mais atentos. Em determinado momento, ao mencionar o trato dos judeus pelos egípcios quando do se seu cativeiro, nos apresenta a seguinte sentença, válida por todo o sempre, pois aquele que É, e é o Senhor, não muda:
(...) e aquele (Israel) que, outrora exposto e abandonado, tinham (os egípcios) repelido com zombaria, admiraram-no finalmente, porque sofreram uma sede diferente da sede do justo. Por outro lado, para os punir dos loucos pensamentos de sua perversidade, que os faziam extraviar-se na adoração de répteis irracionais e de vis animais, enviastes contra eles uma multidão de animais estúpidos, a fim de que compreendessem que, por onde cada um peca, será punido.